A indústria financeira dificilmente é a primeira que vem à mente das pessoas quando o quesito é confiança. Também, ao longos das últimas décadas (séculos?) tivemos uma infinidade de escândalos e golpes.
Mas o pior é quando essa quebra de confiança acontece “dentro das regras”. Confesso que a situação é muito pior nos EUA que no Brasil.
Além de um exemplo que já comentei (do investidor que foi colocado em classe com taxa de administração de 1,45% ao invés de 0,90% para que o corretor ganhasse mais comissão), nesta semana me deparei com mais dois. Ambos tem um ponto em comum, tiram vantagem da falta de conhecimento que os brasileiros tem sobre o funcionamento do mercado norte-americano.
O primeiro é de uma empresa que se posiciona como planejamento financeiro e educação financeira junto à comunidade brasileira. Dizem eles que ajudam os brasileiros a poupar, porém todas as recomendações deles tem um ponto em comum: um seguro de vida (que, “por coincidência”, é o produto que vendem). Não importa a situação financeira da pessoa, seus objetivos, tolerância a risco; a recomendação é sempre a mesma! As projeções usam números esdrúxulos na comparação (como não levar em conta os dividendos do S&P500) e fazem projeções com rentabilidades que não acontecerão no futuro devido ao regulamento da coisa. Obviamente, o produto não serve como investimento e muita gente que o compra nem precisa do seguro de vida.
O segundo é de um grande banco de investimentos. O investidor comprou um fundo de renda fixa e, para ter tal “privilégio”, teve que pagar 5% de taxa de entrada (muito provavelmente sem saber, nem ser avisado). Mas, pelo jeito, há algum tipo de desconto. Na segunda compra, a taxa de entrada foi “só” de 4%. Resultado, até que o dinheiro investido no fundo chegue ao custo total e gere algum lucro, sua rentabilidade precisa ser de 9% – como estamos falando de renda fixa, isso pode demorar algum tempo.
Esse tipo de coisa me deixa revoltado. E, ultimamente, tenho descarregado minha revolta no LinkedIn. Para minha surpresa, tem muita gente que concorda comigo (inclusive falei com um brasileiro que trabalha na Suíça porque ele gostou do que escrevi) e pouca que reclama (claro, não tenho muita gente me seguindo e a amostragem pode não ser significativa).
Por exemplo, por algum motivo recebi um email há algumas semanas de um escritório de agente autônomo da XP. Escrevi isso:
Lembro que há umas duas semanas escrevi aqui sobre o Código de Ética da Planejar (https://lnkd.in/eXxFSNb). Encerrei com a pergunta:
A dúvida é: será que os CFPs vendem assessoria “sem custo”? Ou informam os clientes que sim, existem custos?
Um dos comentários tinha a seguinte pergunta: “…será que algum cliente imagina que imagina que existe assessoria sem custo?”
Hoje mesmo, fiz um post mostrando uma manchete que trazia novamente o termo “sem custo” em uma matéria da Infomoney (https://lnkd.in/e3MVnCi).
Eis que agora pouco recebo um email com o assunto: XXX Investimentos – Assessoria sem custo
Quem enviou não é CFP, mas respondendo a pergunta do comentário: sim, os clientes imaginam que não tem custo!
Além do “sem custo”, porque assessoria financeira é um termo que a CVM deixa ser usado assim? Além do assunto do email, no corpo exsitia a seguinte frase:
“Nosso trabalho consiste no atendimento e criação de um portfólio personalizados e estruturados de acordo com perfil e objetivos de cada cliente e perspectivas em relação ao cenário econômico…”
Corretor (o termo correto), pode fazer isso?
Obviamente, a resposta é não! Veja o que diz a Instrução CVM 497:
Art. 1 Agente autônomo de investimento é a pessoa natural, registrada na forma desta Instrução, para realizar, sob a responsabilidade e como preposto de instituição integrante do sistema de distribuição de valores mobiliários, as atividades de:
I – prospecção e captação de clientes;
II – recepção e registro de ordens e transmissão dessas ordens para os sistemas de negociação ou de registro cabíveis, na forma da regulamentação em vigor; e
III – prestação de informações sobre os produtos oferecidos e sobre os serviços prestados pela instituição integrante do sistema de distribuição de valores mobiliários pela qual tenha sido contratado.
Ou seja, não pode dar recomendação, fazer gestão de investimentos e nem prestar consultoria!
Isso me levou a outro post no LinkedIn:
Aparece muita vaga escritório de agente autônomo (os famosos “assessores”), dizendo que quer gente com/em busca de CFP e CFA.
Pra que?????????
O CFA não vai poder analisar, sugerir investimentos e nem gerir portfólios. O CFP não poderá fazer uma consultoria de investimentos ou planejamento financeiro.
Vejam esse excelente post da Diana Benfatti, CFP®:
Quem me conhece sabe que adoro fazer analogia com a medicina para explicar o papel de cada “agente” no mercado de investimentos. E aqui devo créditos ao meu colega Luiz Paulo Tavares, CFA, CFP®, que me ajudou a enriquecer as comparações.
Os distribuidores de produtos (bancos e corretoras) podem ser comparados com farmácias, com o importante papel de disponibilizar os produtos aos clientes. Os gerentes e agentes autônomos de investimentos são os farmacêuticos, especialistas nos produtos vendidos, podendo explicar aos clientes as diferenças entre a composição, riscos e efeitos de cada ativo.
O planejador financeiro pessoal é o clínico geral, que estrutura a vida financeira das pessoas de forma holística, conectando as 6 áreas do planejamento financeiro e conhecendo de forma aprofundada o passado e planos para o futuro da família.
Os consultores de valores mobiliários e administradores de carteira são os médicos especialistas em investimentos. Eles recomendam os produtos de forma isenta, garantindo total adequação do tratamento ao paciente. Cada um tem seu papel, todos de extrema importância para que o sistema funcione.
Então pergunto: seria bom para os pacientes se os farmacêuticos se propusessem a fazer o trabalho dos médicos, e os médicos passassem também a vender remédios?
Ufa! É o que dizem, é bom falar sobre um assunto pra tirar o peso das costas.
Originalmente enviado aos clientes da Inva Capital em 21/09/2018